Maratona de textos
José Maria Franco de Assis
Filosofia Pura
A culpa foi do
Dunga. Montou um time com três volantes. Quando foi convocar os
"meias", também não teve dúvidas: chamou atletas que não têm vocação
para atacar e tão pouco aptidão em fazer a ligação entre a defesa e os homens
de frente. Se o Brasil tivesse ganhado a copa e o Ronaldinho Gaúcho estivesse
de corpo presente, jogando bem, "comendo" a bola, diriam os
torcedores que o Dunga fez a coisa certa, levou um craque e sensível aos
campeonatos internacionais. Caso perdesse, diriam os filósofos desportistas que
a culpa foi do elemento que apresenta "overjet aumentado" ou
simplesmente, daquele dentuço. Onde já se viu convocar um jogador que não está
bem?
A sabedoria
popular não se cansa de questionar: se o Kaká não estava bem e foi convocado,
então, por que não o Ronaldinho? Fama e camisa não ganham jogos. Caso o Brasil chegasse à
condição de hexacampeão, diriam os aficionados brasileiros que o time foi muito
bem montado, com o melhor goleiro do mundo, uma zaga perfeita e um lateral que
combate, apóia e lança maravilhosamente, bem. Mas, como uma defesa imbatível
leva dois gols efêmeros, inexplicáveis, um deles assinalado pelo próprio
volante de oficio que bateu cabeça com o famoso Julio César? E a FIFA em seu
paternalismo fidedigno, declarou: "não houve gol contra; o Brasil, em
todas as copas, nunca fez gol contra, portanto será creditado para Wesley Sneijder".
Por falar em Felipe
Melo, como compreender que o técnico da seleção brasileira convocou um
indivíduo que fora dispensado pelo Atlético Mineiro e o Flamengo? Está certo
que esses clubes extremamente populares e de inúmeras glórias, de vez em quando
atuam como "curva de rio". Mas, se o "menino" fora barrado
por duas instituições que já admitiram Obina entre outros "cabeças-de-bagre",
como levá-lo para uma seleção brasileira? Tudo bem que o Dunga arriscou muito
em convocar tal atleta e se tivesse sobressaído, diriam os filósofos da crônica
esportiva que o técnico, apesar de o seu agasalho que "furtara" do
carregador de malas do hotel, fora sábio. Transformou o miscigenado Felipe Melo
num genoma quase fiel ao deFranz Beckenbauer.
Se o Brasil
tivesse chegado ao hexa, diria os gurus do futebol que o Brasil foi o único
time monocromático na forma de jogar. Nosso técnico treinou a seleção por quase
quatro anos e nunca se preocupou em criar alternativas táticas. Diriam também
que esse estilo foi tão bem assimilado pelos atletas que time nenhum
conseguiria desmantelar a estratégia brasileira. Nesse caso, os treinamentos
não precisariam ser às escondidas. Para quê? O time ficou tão perfeito e
específico que assim que surgiram as primeiras baixas, o banco não fora capaz
de substituir a altura, tamanha era a especificidade.
Por falar em
qualidades, será que algum comentarista conseguiu explicar o porquê da convocação
do Gilberto Silva e do Michel Bastos? E quando o Dunga precisou de um homem
para fazer o elo entre a defesa e o ataque, a quem recorreu? Não seria o caso
de ter levado o Paulo Henrique "Ganso"? Diriam os mais conservadores
que esse menino ainda é muito jovem, sem experiências internacionais, sem
entrosamento e que quando esteve na seleção juvenil não jogara bem. Então, em
1958, lançar o Pelé com dezessete anos fora uma loucura?
O brasileiro,
mesmo não administrando seus próprios problemas, assume a condição de técnico e
monta times imbatíveis, que na sua cabeça incrementada por alguns goles de
cachaça, ganhariam qualquer campeonato. Esquece-se que uma seleção de futebol
precisa de onze atletas, um banco a altura, comissão técnica extremamente
profissional, dinheiro suficiente e sorte. Muita sorte. Afinal uma partida de
futebol depende da curva da Jabulani, do astral do goleiro, das tiradas de bola
pela defesa e das traves. Como as traves são importantes... Também, não se
esquecem da posição do bandeirinha e da interpretação do juiz, ou da logística
dos cartolas.
Assim, entre
tantos comentaristas, o único feliz e totalmente correto fora Neném Prancha:
"Futebol é uma caixinha de surpresas", ou "o jogo só acaba
quando o juiz apita". Agora nos resta aguardar 2014 e contar com a força
de nossa torcida, apesar de que alguns comentaristas mais pessimistas tentam
ressuscitar a final de 1950, em pleno Maracanã. Puramaldade.
José Maria Franco de Assis é
agrônomo, professor, escritor, membro da ALAMI, Academia de letras, artes e música
de Ituiutaba.
Apocalipse
No passado, o apêndice
automobilístico denominado espelho retrovisor servia para ter uma visão
panorâmica do que estava acontecendo na parte posterior do veículo. Hoje, serve
para o adolescente verificar a posição correta do boné, se há necessidades de reforçar
o batom, ou simplesmente, para o motorista dar risadas dos outros que esperam
ansiosamente, em sua traseira, quando pára em fila dupla para jogar conversa
fora com os amigos. Já a buzina, que em tempos idos evitou vários acidentes,
atualmente tem o objetivo de chamar o proprietário da casa, ou acelerar a
balconista que ainda empacota o presente adquirido via telefone, ou ainda, para
assustar os velhinhos aposentados que andam displicentemente pelas ruas. O
simples rádio que passava as últimas notícias do país, afugentado o sono do
motorista, foi substituído por aparelhos modernos, digitalizados, que propagam
o som em enormes caixas, em dezenas de decibéis, interrompem a conversa das
pessoas e disparam os alarmes dos carros estacionados ao meio-fio.
O mesmo serviço volante de som que
avisava sobre as novidades, sobre impostos e cortes de energia
aos que não sabiam ler, hoje andam espalhando notícias de liquidação comercial,
alterando o estado de saúde daqueles que estão nos leitos hospitalares, ou tirando
a concentração de outros que lêem nas escolas e bibliotecas. Não existem mais
os motores e seus carburadores de difícil regulagem que transportavam mulheres
em serviço de parto e funcionários que caiam do andaime nas construções de
prédios; ou levavam às pressas agricultores que foram picados por cobras. Agora
são máquinas com injeção eletrônica, dezesseis válvulas e dezenas de RPM que
invadem o farol fechado, atropelam pedestres e decepam a vida de crianças que
brincam nos passeios das respectivas residências.
Pois é, não dá mais para admirar
aquele carrinho que calmamente passava na via, esbanjando seus pneus de faixa
branca, o escuro protetor solar e a marca registrada com letras metálicas nas
quatro faces do veículo. Agora é uma mistura de carro com estampa de maus
presságios, um ser em alta velocidade de "olhos" febris expandindo
uma forte luz branca que ofusca a visão de transeuntes e outros motoristas. É
uma coisa num invólucro de vidros negros, em cujo interior espera-se que exista
pelo menos um hominídeo, também com óculos escuros e as mãos tentando controlar
a latinha de cerveja, o celular e a direção. É meu compadre... parece mesmo que
o aprimoramento da tecnologia e do genoma humano andam na mesma via, contudo em
sentidos opostos...
José Maria Franco de Assis é agrônomo,
professor, escritor, membro da ALAMI, Academia de letras, artes e música de
Ituiutaba.
...e a morte da Marfisa
Ainda não
eram seis horas da manhã e já havia dezenas de curiosos ao redor do tão
dilacerado equídeo. A pequena égua fazia os últimos movimentos com o maxilar,
respirava fracamente e em longos espaços de tempo, enquanto tremiam os poucos
feixes musculares que lhe restavam. Depois parou de respirar. Alguém falou
alto, - á égua morreu! O vizinho do carroceiro disse, em voz baixa, - a Marfisa
descansou. Dona Jurema, completamente indignada, comentava que no início da
tarde de ontem, no momento mais quente do domingo, que os filhos do carroceiro
deram muitas chicotadas no lombo da Marfisa. Todo final de semana era sempre
assim. Enquanto o volumoso carroceiro "ruminava" a fim de dirimir o
gorduroso almoço diluído em solução alcoólica, seus filhos e amigos - e amigas
afins - colocavam-na à carroça e em disparada, se deslocavam rumo ao ribeirão
poluído do bairro. Era o piquenique dominical dos promíscuos e adolescentes
vilarinhos. Sem dúvida fora a gota d'água.
Agora
Marfisa estava morta. Na porção posterior do corpo, misturado aos fios da
cauda, havia resíduos fecais que ressaltavam o que comera no final da semana:
casca de arroz. Era o que recebia como ração, "bóia" de arroz e água,
apenas duas vezes ao dia. Marfisa não podia reduzir o lucro do proprietário. Na
porção terminal dos membros observavam-se as unhas, quase na parte carnal, que
ainda tentavam sustentar as ferraduras repletas de enormes e metálicos cravos.
Estavam corroídas e rachadas de tanto colidirem no asfalto rígido e quente.
Foram as intermináveis subidas quando arrastava cinco, seis ou mais sacas de
cimento, sem contar os quase cento e vinte quilos de pecados que de tempo em
tempo lhe arremessava chibatadas. Marfisa se esforçava tanto que perdia o
apetite de comer resíduos de cereais. Perdia a sede, apesar dos quase quarenta
graus durante as doze horas de trabalho ao dia.
- Eu disse
várias vezes a esse infeliz, comentava Dona Jurema, vende esse pobre animal
para algum agricultor. Lá na roça ela terá pastagens, sombra, água fresca, sem
contar que não tem asfalto quente para lhe dilacerar as unhas. Ele sempre
respondia, - quem vai puxar a carroça? A senhora está disposta? Mas, você não
precisa mais de carroça. Compre um pick-up e faça frete motorizado, homem!
Acontece que não sei dirigir automóvel, dizia o ignorante senhor. Nisso ele
tinha razão. O que sabia era apenas estalar os lábios, dar chicotadas sobre o
lombo da égua e inspirar os gases e aroma das fezes que o animal liberava,
enquanto esperavam a abertura do farol, justamente na porta da padaria.
Segundo
conceitos e teorias de alguns estudiosos do espiritismo, de outros que
pesquisam as ciências biológicas, como poucos geneticistas, comentam que a
interação entre energia e massa, ou alma e matéria ou espírito e corpo, que
ocorrem no homem, também acontece em outros animais, contudo em menor grau
evolutivo. Apesar do menor valor de evolução nos irracionais, seria possível a
transcendência da energia humana para um cão, ou em sentido contrário. Se a
premissa estiver correta, é possível uma égua ter alma de humano ou uma pessoa
ter o espírito de uma mula. Assim, quem sabe, em outros momentos desse planeta,
o viúvo carroceiro foi um eqüídeo e a égua um pomposo comandante de carroça...
Não! Essa situação seria completamente inviável. O atual carroceiro seria
incapaz de parar diante de um farol vermelho sem o avanço do abridão na
comissura labial proporcionado pela até então carroceira Marfisa. E no final do
dia, quando a sua proprietária se encontrasse completamente bêbada, como
acontecia toda tarde, será que ele enquanto égua traria Marfisa até ao bojo de
sua família?
José Maria Franco de Assis é agrônomo,
professor, escritor, membro da ALAMI, Academia de letras, artes e música de
Ituiutaba.
Verso
e anverso
O ser humano deveria ser conhecido,
reconhecido e tratado pela própria identidade, sempre. Teria que ser José
Antônio, ou melhor, José Antônio da Silva. Se permanecessem dúvidas, recorreria
à genealogia. Estou falando do filho do João da Silva. Lembra-se? Não?! Filho
da Dona Ana, aquela senhora que mora na casinha amarela lá da rua estreita... O
José é irmão da Jussara, aquela g... que a semana passada namorou o Gilson de
Freitas Alves... Agora você se lembra? Ah... como lembra.
Entretanto, as pessoas não importam
com o pedigree e qualquer motivo é suficiente para que se altere o registro
civil do cidadão. Dessa forma, sem qualquer cuidado ou receio, Josés são
transformados em Jucas, Antônios em Tonicos, Joaquins em Quincas, Marias em
Cotas, Franciscos em Chicos e assim por diante. Também é comum a alcunha se
estender aos pertences, como é o caso de Quincas Bar, ou Quinca's Bar, Tonico
da bicicleta, Juca do laticínio ou ainda de forma mais complexa, por exemplo,
Tonico do seu Quinca.
Conforme são as posses do cidadão, a
nomenclatura vai sendo moldada. Dessa forma as pessoas vão sendo identificadas
como aquele da "lambretinha", da "motinha" roxa, aquele que
anda no "fusquinha" da sogra ou o sujeito que mora num "barracão"
lá na vila dos "descamisados"... Se as posses se avolumam, as
designações tomam outro sentido. Surge aquele da "motona" verde, o
outro que mora numa "mansão", o moço do "carrão" preto e
vidros escuros, a "loira" da mercedes, e assim por diante.
Depois de algum tempo, as pessoas
estão totalmente descaracterizadas, a respectiva identidade é integralmente
transferida para os pertences e esses, adquirem dinâmica e personalidade
próprias. Você viu? Roubaram a mansão lá da rua larga! É mesmo? E quem roubou?
Ainda não se sabe. A caminhonete dos ladrões não tinha placas... Pois é, o
chevetinho vinha a mais de cem por hora; o escortinho tentou jogar para a
contramão e ai aconteceu. Passou por cima da motinha. O cara morreu na hora?
Não observei. Fiquei analisando os pedaços da motinha a fim de avaliar em
quanto ficava o conserto... Sabe aquela cabine dupla, preta e de vidros
escuros? Pois é, ontem ela foi a Santa Rita em meia hora! Puxa vida, então
andou perto dos duzentos por hora! Aquilo é muita máquina... Se eu tivesse uma
quinhentona aquela gatinha sairia comigo! Que nada! Aquela é maria-maçaneta.
Ela sai em pampinha, uninho, escortinho, chevetinho, corsinha e na hora
"H", até em joguinha...
Mais à frente os bens materiais
tornam-se seres robustos, decisivos e de vontade própria. Caminhonete 2009 não
pode andar atrás de fusquinha, tem que ultrapassar a qualquer custo, mesmo que
estiver muito próximo do farol! Concordo. É um absurdo um Audi acompanhar a
lentidão de um uninho... inadmissível! Outro dia o babaca do Juca do Chico,
raça dos Patacas, estava desfilando num saverinho na porta do frigorífico... já
pensou? Por acaso lá é local para estacionar furrequinhas? Claro que não. Muito
menos lugar para vender gabirus...
Pois é, as empresas se tornam modelos
e as usinas se agigantam; a Scania, a Ferrari, a kawasaki e
o boi nelore, vão; os descamisados e de pés descalços, voltam. Espero que nos
domínios do Senhor ainda haja estacionamento para bicicletas e sombra farta
para os pedestres sem alcunhas, justamente aqueles que caminham driblando a
potencia e a imponência dos pertences dos "superiores" ou de quem,
momentaneamente, por tamanha infelicidade, se esqueceu dos ensinamentos do
Onipotente.
José Maria Franco
de Assis é agrônomo,
professor, escritor, membro da ALAMI, Academia de letras, artes e música de
Ituiutaba
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