Doando Sangue e Amor
Juarez M. Avelar
Em 1970 eu morava na 38a Enfermaria
da Santa Casa de Misericórdia no Rio de Janeiro, cursando o 1o ano
do Curso de pós-graduação em Cirurgia Plástica, ministrado pelo professor Ivo
Pitanguy. Para suprir minhas necessidades econômicas, dava plantão semanalmente
em um Sanatório de psiquiatria das 7h00 de domingo às 7h00 de segunda-feira,
para não prejudicar minhas atividades no Curso. Atendia e prestava assistência
aos mais de 120 doentes mentais que ali viviam em regime de internação. Ao
término dos plantões, às 7h00 da manhã de segunda-feira eu saía do Sanatório e
voltava à Santa Casa para participar das cirurgias que ocorriam na 38a Enfermaria.
Numa segunda-feira do mês de junho,
permeada por uma agradável atmosfera de inverno tropical, eu cheguei à Santa
Casa e fui caminhando apressadamente pelos imponentes corredores daquela
secular instituição para chegar à 38ª Enfermaria. Eu estava atento ao programa
cirúrgico daquela manhã para participar como auxiliar das cirurgias
estabelecidas na reunião da 6ª feira anterior, organizada pelo Prof. Ramil
Sinder e coordenada pelo Prof. Pitanguy.
A Santa Casa é um histórico
prédio que exibe uma estrutura deveras peculiar, cujas características denotam
em sua totalidade uma construção erguida no Século 19 e já desgastada pelo
tempo. O piso da porta de entrada estava carcomido pela constante passagem das
pessoas, as compactas paredes com um metro de espessura e todas revestidas com
azulejos portugueses brancos e azuis, o pé-direito com mais de oito metros de
altura e enormes portas de madeira entalhadas com desenhos esculturais em
alto-relevo impregnam toda a área construída com a solenidade típica dos
mosteiros claustrais.
Para chegar à Enfermaria que se situa
no 2o andar do último prédio do complexo arquitetônico, era
inevitável percorrer os longos corredores e passar pelas dependências do
Laboratório localizado no andar térreo, antes de subir as escadas ou adentrar
no velho elevador que ostentava uma solene e impessoal porta pantográfica.
Naquela manhã ao caminhar pelo último
corredor e aproximando-me do bloco onde fica a 38a Enfermaria,
notei uma longa fila das pessoas que aguardavam atendimento no Laboratório de
Análises e Banco de Sangue. Dentre as numerosas pessoas naquela fila sobressaia
um senhor negro, alto, magro, vestindo roupas claras e limpas, contudo puídas,
certamente pelo tempo de uso, que me olhava com insistência.
Seus olhos acompanhavam meus passos,
com inusitada curiosidade e, à medida que dele me aproximava, seu olhar era
ainda mais incisivo, como se quisesse dizer-me algo ou necessitasse de alguma
informação importante.
Há aproximadamente dois metros de distância daquele cidadão, percebi que era
inevitável dirigir-lhe uma palavra em atenção ao seu insistente e vigilante
olhar para mim. Assim, amistosamente disse-lhe um bom-dia, ao que ele
respondeu:
-Bom-dia, doutor.
Ele demonstrava sinais efusivos de
alegria diante de meu gesto, e com expressão de contentamento que iluminou seu
rosto emagrecido nem tato pela idade, mas como sinais de precoce
envelhecimento, deixando-me ainda mais intrigado. Senti necessidade de
dizer-lhe algo mais que um cordial bom-dia. E assim disse-lhe:
- O senhor veio fazer
exames?
Indaguei simplesmente com o propósito
de dar-lhe a oportunidade de um eventual diálogo.
- Não, doutor,
não vou fazer exames - respondeu.
Sua face continuava transmitindo
curiosa alegria decorrente do curto diálogo estabelecido entre nós, e
continuou:
- “Estou aqui, doutor, para doar
sangue. Há três anos minha filha morreu, nessa mesma Santa Casa, vítima de
leucemia. Graças aos médicos daqui e das inúmeras transfusões de sangue, minha
filha viveu mais um ano depois daquele triste e fatal diagnóstico que confirmou
sua doença. Por causa das transfusões, pude conviver com minha filha por mais
algum tempo. Depois de sua morte, voltei aqui para saber como poderia retribuir
um pouco do muito que a Santa Casa e os médicos fizeram por minha filha. Sou um
homem pobre, trabalho como lavrador na zona rural de uma pequenina cidade no
sul de Minas, não tenho dinheiro, mas fui informado que posso doar sangue uma
ou duas vezes por ano. Assim venho aqui de vez em quando porque quero
retribuir com meu sangue a alegria que os médicos me proporcionaram prolongando
a vida de minha filha, mesmo que tenha sido por poucos meses. E
hoje é um dia desses, doutor. Estou aqui para doar sangue. Penso assim
poder ajudar outras pessoas, como o sangue de outras pessoas ajudou a prorrogar
a vida de minha filha ”.
Nunca mais vi aquele senhor, mas esse
episódio ficou indelevelmente gravado em minha memória pela sincera expressão
de gratidão, amor e esperança emanados de suas palavras e que traduziram em
plenitude valores sublimes, como a solidariedade e a fraternidade, ambas cada
dia mais escassas, mas felizmente, não extintas.
Enquanto houver almas caridosas, a
esperança de um mundo melhor, mais justo e mais fraterno, sobreviverá aos escombros
do egoísmo. Embalado pela emoção que vivenciei e aqui descrevo, elaborei um
pensamento poético que reflete a essência daquele episódio que vivi no início
de minha vida profissional.
Esperança
Bom seria se não faltasse coragem e não
existissem temores!
Bom seria se não faltasse alegria e não existissem dores!
Bom seria se não faltasse sorriso e não existissem rancores!
Bom seria se não existissem espinhos e
não faltassem flores!
Bom seria se não
existissem trevas e não faltassem cores!
Bom seria se não existisse ódio e não faltassem amores!
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