(três textos)
01 - Sobre peixes e homens
Whisner Fraga
Carlinhos ajeita o braço de Pedro
nos ombros da mãe. Mãe é colo. O menino se aquieta e avança em seu sono cômodo
e legítimo. O barulho, a música, o céu encrespado não o incomodam. Uma toalha
cobre as costas nuas da criança e sua cabeça repousa na segurança da mãe. Mãe é
colo. Pedro nem de longe lembra o menino arteiro e festivo de minutos antes.
Cansou de levar o peso das coisas. Uma criança de dois anos não deveria ter
fardo nenhum para transportar. Mas tem. É preciso entender e respeitar a carga
de cada um.
A água está hostil. As ondas
encrespadas surram o casco da embarcação. Nos equilibramos naquele marulhar
sonolento, à espera dos peixes. Carlinhos desiste da pescaria e resolve se
sentar ali perto de nós, ajudando na troca de anzóis. Estamos todos, até onde
possível, em silêncio. Bebericamos uma cerveja enquanto os lambaris se escondem
na bacia. Em breve serão iscas. Meu irmão, mais experiente, já está no terceiro
tucunaré. Não temos inveja, pois a bebida está gelada e o dia está bonito.
É o último dia do ano, embora não
saibamos ao certo o que isso significa. Não há ninguém saudoso, aparentemente.
O vento se esfrega em nossa cara. De repente, algum animal espreita entre os
arbustos. É raro algo silvestre se esgueirar pelos barrancos. Há muitos resorts
transgredindo todas as leis de conservação ambiental. O bom é estar bem perto
do rio e algumas toneladas de concreto não fazem diferença em nada. Multas não
tiram a vontade de viver. É o que devem pensar.
A chuva nos rodeia e um chuvisco
nos pega de surpresa, nos refrescando. Há cerveja para todos e ela está gelada.
Pedro vai para o colchão arrematar o sono. Miltinho cochila na proa. Dali a
pouco, se as traíras não aparecerem, iremos para outro ponto. Ainda não se consegue
interpretar precisamente o comportamento dos peixes, de forma que é preciso
esquadrinhar o rio. As linhas se entrelaçam, mas não importa. Recolhemos os
anzóis e trabalhamos os nós.
De vez em quando uma canoa
atravessa. Um barco. O movimento não é grande. Esperávamos mais gente no último
dia do ano. Não que desejássemos um rio cheio de naus. Sei que em breve haveria
um réveillon, mas isso não me comove. Os calendários, como bem se sabe, são
todos ficção. E só me sensibilizam ficções mais elaboradas. Quantos papas se
meteram nessas minúcias? Quantos legisladores? Nem a simbologia do ano novo é
instrumento que valha.
Em breve seria réveillon e eu
talvez dormisse um pouco mais cedo do que de costume, devido ao barulho
estúpido de rojões manchando o céu. Não gosto de ruídos inúteis. Findo o
passeio, convoco Ana e Helena. Minha mãe também retorna conosco. Com o correr
dos anos, não nos importamos mais com essa história de ano novo. Calendários
são ficção. E o tempo?
Culinária
Whisner Fraga
Minha avó Virgilina emerge da
cozinha, enxuga as mãos no vestido de corte bem reto e tecido estampado. Usa
chinelos e se aproxima de nós. Estamos eu, meu pai, mãe e irmãos. É quase
noite. Minha avó nos cumprimenta, ainda me chama de branquinho. E se senta, a
cadeira debaixo de um quadro em que podemos ver Jesus e seu coração ornado com
uma coroa de espinhos, no meio do peito. Eu tinha medo da pintura. Tinha medo
daquele Cristo. Mas não tinha medo de vovó.
Minha avó Virgilina se senta,
cruza as pernas e já coloca as duas mãos sobre o colo. De vez em quando penteia
os cabelos com os dedos enrugados. De vez em quando ajeita o vestido. Seus
olhos são muito vívidos, espera por notícias nossas, espera por qualquer
observação que inicie o diálogo. Vovô, numa altura dessas, ainda está na copa,
em frente à televisão. Esperamos ansiosos pelo convite. Sempre há o convite,
mas o instante em que ele acontece nunca é o mesmo.
Então, após todas as novidades
estarem gastas, esmiuçadas, ela nos chama para a mesa. Meu avô parece se
esquecer do telejornal e se vira para nós. Então os pratos estão postos, é só
aguardar. Até que chegam as almôndegas. O cheiro, podemos senti-lo já
provocando nossa fome. Acho que havia também o arroz, o feijão, uma salada.
Colocavam-me em meu prato duas, talvez três “armoncas”, que era como minha avó
as chamava. “Armoncas”. Disso não me esqueço. Nem do sabor daqueles bolos de
carne.
Minha avó Virgilina depois
recolhe as louças. Volta da cozinha com algum doce. De mamão, de cidra, de
figo, de leite? São surpresas. Então ela passa a mão um pouco fria em meu
rosto, em meus cabelos. Gostou, branquinho?, ela quer saber. Eu encolho a
cabeça, me refugio na timidez. De repente estou perto do meu avô Jerônimo e ele
recolhe meu braço e me dá uns tapinhas, os dedos nodosos e entrevados.
Vovô Jerônimo pica o fumo, o
canivete de lâmina carcomida. Enrola a palha, num trabalho meticuloso. Reclama
do presidente, reclama dos preços, reclama da corrupção. Ouço atento. Saca o
jornal, que está ao lado da televisão e aponta as manchetes. A vida não é
fácil: inflação, desemprego, violência. Acende o cigarro, contrariado. Logo
espia a gente, o semblante se desanuvia. Faz uma brincadeira qualquer e, logo
depois, minha avó nos convoca para o sofá. Subitamente, é hora de irmos embora
e não reclamamos. Também sentimos que é hora de ir. E não reclamamos.
Ah, e não reclamamos.
Prefiro o medo
Whisner Fraga
Tenho medo.
Podem ter grampeado meu celular e
a ligação de Ana perguntando se quero vinho no jantar corre o risco de cair em
domínio público. As caveiras que Helena me manda pelo whatsapp podem significar
qualquer coisa de maldita, de simbólico, se fora do contexto.
Portanto, tenho medo. E respeitem
meu medo.
Olho para os lados ao atender o
telefone e procuro ser bem claro quando digo algo. Repito, explico, esmiúço.
Depois me lembro que aquele que interceptou legalmente minhas chamadas pode
fazer o que quiser com as frases. Cortá-las, editá-las, processá-las.
Teoricamente não adianta nada todo esse cuidado. Só que o medo nos deixa um
pouco incoerentes. Experimentem.
Em uma mesa de bar quase me
silencio. Embora vez ou outra me renda às trivialidades, tenho preferido a
mudez. Pode ser que algum desses colegas seja um infiltrado. Há muitos hoje em
dia. E um infiltrado, bem sabemos, sempre carrega um gravador, desde 1964.
Tenho medo quando percebo a
divisão de tudo em apenas dois opostos. Não existe mais um terceiro lado e isso
é preocupante, se evocarmos as antigas aulas de geometria. Certo versus errado. Desfavorecidos versus classe média. Intervenção militar
versus não vai ter golpe. Cruzeiro versus Atlético.
Torcemos para estar do lado certo
e o lado certo é aquele que sairá vencedor.
Tenho medo.
Os dentes das ruas estão armados
até às cáries de fuzis, metralhadoras, cassetetes, algemas e pistolas. A boca
desdentada da rua que baba um colostro de violência. Bispos vociferam, pregando
a selvageria. Bancadas evangélicas espumam contra o aborto, mas defendem a morte
aos inimigos. É por isso que as ruas estão banguelas: dente por dente.
Tenho medo das milícias que
patrulham opiniões divergentes. As redes sociais estão cheias de infiltrados
capturando telas. O certo é estar ao lado daquele que vencerá. Enquanto isso,
resta-nos o temor.
Tenho medo que um dia me prendam
porque estive do lado errado e declarei meu amor à verdade. Essa verdade que,
coada, pode se tornar mentira. Que retalhada, exposta, descontextualizada, pode
se tornar vergonha, condenada de antemão.
Tenho medo porque não tenho
amigos. Nunca tive amigos e agora os tenho menos ainda. Em tempos de crise, a
manada se dispersa em velocidade constrangedora. Por isso prefiro não ter
amigos: para não me decepcionar caso tenha escolhido o lado errado. E não tenho
amigos, porque a experiência me diz que eles são delatores. Incriminam nosso
amor à verdade, simplesmente porque ela não tem o rosto ou o tom ou o lucro da
verdade que defendem.
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