- Maratona de crônicas -
- sete textos -
Eliane Gouveia
01
O VESTIDO DE FESTA
Mal a Avó pisou no Apê e a Menininha já a estava
puxando pela mão.
_ Vó, vem cá ver uma coisa!
A Avó tentou enrolar um pouco:
_ Peraí, dexô tirar meu sapato.
_ Vem, Vó, vem ver uma coisa!
_ Péra, vou deixar as malas no
quarto.
_ Vem, vem, por favor, Vó!
Até que a Avó cedeu e foi.
A “coisa” era uma sacola da “Minêi”
com roupinhas de boneca.
Continha um vestidinho, um “bêibidol”
e uma fraldinha descartável.
_ Que gracinha, você fez a mala da
sua filhinha?
_ Fiz!
_ Num sabia que ela também ia viajar
conosco!
_ Vai, Vó, mas ainda não tem roupa
para a festa.
Então a Avó ouviu a temida pergunta:
_ Vó, “PÓDE” fazer um vestido para a
Malu?
A frase, formulada assim, com a
silepse do pronome, passa inexoravelmente de interrogativa para imperativa.
“Vó, PÓDE fazer”, significa
exatamente: “Vó, você VAI fazer!”.
E num adianta espernear com
argumentos do tipo: na sua casa num tem tecido, num tem linha, num tem tesoura,
num tem agulha.
Nada convence a Menininha!
Se vira!
Inventa um pedaço de “não-tecido” que sobrou da
fantasia do Dia da Primavera na escola, descobre um kit de primeiros socorros
para roupas que o Pai trouxe do hotel, pega uns lacinhos de fita antigos (de
colar com sabonete na careca da Neném).
Inventa, que não tem saída!
E o vestidinho se faz!
_ Mas Vó, “PÓDE” fazer uma capa
também?
Ai, ai, ai meu pai! Capa de que
jeito, com que pano?
Asas à imaginação e desmancha-se o
saquinho de seda transparente, porta sachê de sabonetinho.
E ...txârânnnn!!!
Ficou linda a Maluzinha vestida de
azul turquesa, capinha esvoaçante, lacinhos rosa e lilás.
Modelito confeccionado, “ateliê” organizado,
roupinha na mala, seguiu-se a viagem!
“Vamoscomdeusenossasenhoracapetinhatrástocandoviola!”
Chegando à festa, Maluzinha vestida
de “Elza”, abafa na sua primeira aparição no “ráiguisoçáite”.
Lá pelas tantas, a Menininha,
exausta, dormiu, e a boneca ficou esquecida sobre uma mesa.
A festa “bombou” até as quatro da
matina, quando os últimos convidados voltaram para o hotel.
De manhã, a Avó recebe o telefonema
angustiado:
_ Mãe, você trouxe a Maluzinha da
festa ontem?
_ Não, por que?
_ Porque eu acho que ela sumiu!
E começou o rebu.
Uótizápis comendo solto no grupo da
Família.
“Alguém viu a boneca?”
“Uma bonequinha de vestido azul?”
“Táva em cima de uma mesa!”
“Vi, não.”
“Nem eu!”
“Nem eu também!”
“Quem saiu por último?”
“Acho que foi a Tianem.”
“Calma, vamos voltar ao clube, quem
sabe o pessoal da limpeza achou e guardou.”
Voltou-se ao clube e nécas de
pitibiribas!
Drama instalado, tensão no ar até que
a Menininha pergunta:
_ Pai, cadê a Maluzinha?
O Pai engole seco e responde evasivo:
_ Deve estar na sacola dentro do
porta-malas.
E o carro segue rumo à casa dos
aniversariantes para as despedidas e agradecimentos pela festa maravilhosa.
Então.... Aleluia!!!
Tianem, última a sair da festança,
que ainda num havia ligado o zápi aquela manhã, achou a boneca abandonada e
guardou junto com os presentes.
Alívio geral, alegria, despedidas,
beijocas, lágrimas de emoção.
Todos entram no carro para a viagem
de volta.
A avó ajeita o cinto de segurança da
Menininha, coloca a boneca em seus braços e diz:
_ Querida, “PÓDE” grudar os olhos na
Maluzinha até chegarmos em casa?
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Eliane Gouveia
02
ERRO DE PORTUGUÊS
A dona do salão comtemplava orgulhosa
o letreiro pintado na fachada:
“FULANA´S Cabeleireiros”.
O pintor já ia descendo da escada com
a lata de tinta e o pincel, quando o homem passou, olhou, leu e falou:
_ O nome do seu salão está escrito
errado!
A moça olhou desconfiada para o
transeunte e indagou:
_ O que foi que o senhor disse?
_ Eu disse que há um erro de
Português aí!
_ Como assim, num tem erro nenhum
aqui!
Implicante e metido a “professor do
mundo”, o homem reafirmou:
_ Tem sim, tem um erro aí!
O pintor, no alto da escada, prevendo
a demora do bate-boca, sentou-se no último degrau, pendurou o cabo do pincel
entre o indicador e o polegar, muniu-se de paciência e ficou a brincar de
pêndulo.
A dona do salão, irritadíssima,
retrucou:
_ Se o senhor acha que tem um erro
aqui, então prova!
_ Eu num tenho que provar nada! Só
sei que tem um erro, e pronto e acabou!
Já meio insegura com a segurança do
outro, a moça ponderou:
_ Como vou saber se o que o senhor tá
falando é verdade?
Ele teve uma ideiabrilhante:
_ Pegue um catálogo telefônico e olhe
como estão escritos os nomes dos outros salões.
A moça foi até a padaria da esquina e
pediu um catálogo emprestado.
Entregou-o ao homem que abriu direto
na letra “C” e apontou triunfante:
_ Aqui, ó: LAUD´SCabeleireiros,
BELCabeleireiros, GENICabeleireiros, JURA Cabeleireiros, DORA Cabeleireiros, tá
vendo?
Muito sem gracinha a cabeleireira
concordou com o erro e perguntou:
_ Mas e agora, o que é que eu faço?
O homem, orgulhoso do seu triunfo,
replicou:
_ Sei lá, se vira! O que eu sei é que
tava errado!
E foi-se embora todo exibido,
deixando atrás de si a moça encafifada e o pintor empoleirado na escada!
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Eliane Gouveia
03
ALEITAMENTO MATERNO
Alicinha, entusiasmada com a chegada
da Cadelinha, foi fazer compras no “Pétixópis”.
Estava avaliando os artigos quando a
vendedora se aproximou e:
_ A senhora está precisando de ajuda?
Alicinha “adorava” aquelas abordagens
“Mêibi a Rélpi?”, mas se conteve e respondeu evasiva:
_ Obrigada, estou só olhando uma
vasilha de ração para uma filhote.
_ Ah, que gracinha, de que raça ela
é?
_ É uma “Fox-Latinha”.
_ E que ração ela está comendo?
_ Por enquanto eu estou dando só
leite pra ela.
_ Nossa!!! Mas a senhora num pode dar
leite Humano pra cachorro!
Alicinha largou a vasilha na
prateleira e olhou espantada para a moça.
_Uai, mas eu numtô dando leite
Humano, eu estou dando leite de Vaca!
_ Pois intão, isto que eu falei:
leite que os humanos bebem!
_ Ah, bom! Sendo assim, então...
Alicinha suspirou aliviada!
Por um momento temeu que a boçal
houvesse pensado que ela própria, Alicinha,estivesse amamentando a cachorrinha!
Agradeceu, saiu, e foi fazer suas
compras noutra loja,onde se vendesse artigos para cães, digamos, maisCaninos!
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Eliane Gouveia
04
LEMBRANÇAS...
Querida comadre, hoje passei em
frente à sua antiga casa e a vi caída ao chão.
E senti vontade de chorar.
Por alguns segundos um filme se
revelou em minha memória.
Vi a entradinha lateral, o
portãozinho de madeira por onde eu sempre passava, o corredor comprido que ia
até a porta da cozinha.
A casinha de despejo, trançada de
teias de aranha, com as estantes cheias de livros antigos, a Coleção do Tarzan,
o Egípcio...
O terreno no fundo com os galos de
briga atrás das telas do galinheiro.
A figura sisuda de seu pai, a timidez
do Paulinho, o olhar maroto do garoto Horácio, as bochechas rosadas do pequeno
Vinícius, a beleza delicada da doce Valéria, os olhinhos azuis da vovó Djanira,
a “fofura” da simpática Verônica.
E a imagem dela, a Mãe Terezinha,
aparando as arestas, enrolando pães de queijo para o lanche, dois de cada
vez, numa habilidade imprescindível a quem desempenhava múltiplas funções de
esposa, mãe, mestra, mulher e amiga amorosa.
Voltei da viagem saudosa, olhei as
ruínas e pensei:
“Quem bom que eu pude partilhar destes
momentos felizes!”.
E então eu chorei.
Mas não foi de tristeza, não.
Chorei foi de gratidão!
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Eliane Gouveia.
05
AMOR DE RUA
Às cinco horas da manhã ela acorda
com os gritos.
Aguça o ouvido.
O som se repete.
São mais gemidos do que gritos,
seguidos de uma tosse meio cortada.
Chama o filho.
_ O que será isto?
O moço se levanta, vai até a porta.
_ Não é nada não, mãe, é só um
bêbado.
E torna a dormir.
A mãe já não dorme mais.
O som intermitente, doído, a tosse,
tudo a impressiona.
Olha pela janela vê o vulto caído na
calçada do outro lado da rua.
Ainda está escuro.
Angustiada a mulher continua espiando
em vigília.
Amanhece.
E lá está o corpo frágil postado de
bruços.
As mãos sob o abdômen, as pernas finas
cruzadas uma sobre a outra.
A camisa suja, toda molhada do lado
de baixo.
_ Urina, vômito?!
A cena a aflige.
_ Coitadinho!
Ela vai à cozinha, côa o café, volta
à janela.
_ Será que tem mãe?
Olha de novo.
_ Coitadinho!
Será que está morto?
_ Coitadinho!
_ Podia ser meu filho!
_ Coitadinho!
Se tivesse coragem ela iria até lá e
o traria para dentro de casa.
A todo o momento as palavras do
Mestre ecoando em seus ouvidos:
“Amai o próximo como a ti mesmo”.
Ela ama, mas sente-se impotente,
fraca, covarde.
Alguém diz:
_ Tem que chamar a Polícia para
retirar o bêbado de lá.
Ela sente certo alívio.
Boa idéia!
A Polícia também é o próximo amoroso
e está mais acostumada a ver estas coisas.
“Estas coisas”: a Vida caída ao chão,
junto com os sonhos, a saúde, a dignidade, a esperança de um futuro, de um
Amor.
A mulher conheceu um homem que
abrigou um bêbado em seu alpendre por muitos anos.
Segundo a história, o bêbado era um
sujeito bom e trabalhador, mas quando “invernava” na pinga virava um “chato de
galocha”.
O dito homem o acolhia em sua porta
todas as noites de bebedeira, dava-lhe de comer, aplicava-lhe remédios,
dava-lhe uma coberta para proteger-se da madrugada fria.
Este homem amava o próximo sem
covardia.
Ela não!
Ela até ama o próximo.
Mas apesar de querer muito, não
consegue pôr em prática este Amor.
Ainda que não fosse um “Amor de
dentro de casa”, que pudesse ser pelo menos um “Amor de alpendre”.
Não é.
Seu Amor é Amor de sarjeta, Amor de
rua!
Coitadinha!!!
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Eliane Gouveia
06
NUANCES
A mulher foi à papelaria procurar uma
caixa de lápis de cor de qualidade melhor do que “aquela” que todo mundo tem e
que é meio ruim.
Encontrou uma prateleira lotada com
“a de sempre” e perguntou se a loja não vendia outra marca.
A vendedora disse que sim, conduziu-a
a uma outra gôndola e mostrou uma caixa de lápis de cor, importada.
Os lápis eram um pouco mais grossos e
um pouco mais caros do que os da marca nacional.
A mulher então quis saber o que os lápis
importados tinham de diferente dos nacionais.
A vendedora, munida de toda ênfase,
explicou:
- A diferença é que estes são mais
grossos, de outra marca e mais caros!"
Estupefata e perplexa, a mulher
comentou:
- Ah, tá... Entendi! Sendo assim
então...”
E saiu da loja para procurar em outro
endereço uma caixa de lápis de cor com “diferenças” mais específicas.
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Eliane Franco Guimarães Gouveia
07
ELIXIR DA MELHOR IDADE
(“Está naquela idade inquieta e
duvidosa, que não é dia claro e é já o alvorecer;
Entreaberto botão, entrefechada rosa, um pouco de menina e um pouco de
mulher...” -Machado de Assis – do poema Menina Moça.)
A mulher entrou naquela idade
duvidosa “desfalecido-botão-despetalada-rosa”, e, ao começar a sentir os
mal-estaresinerentes à nova faixa etária, foi pedir ajuda à amiga Farmacêutica.
_ Quero que você me prepare um Elixir
da Juventude, da Saúde, e da Felicidade.
Lápis e papel na mão, a doutorase
preparou para anotar o corolário.
_ Conte-me tudo o que você está
sentindo.
_ Uai, eu estou sentindo diversas
coisas.
Eu durmo, mas meu sono não é
reparador;
Quando alguém liga um sonzão
estridente, sinto vontade de pegar um porrete e dar na cabeça do cidadão;
Minha paciência com gente besta, está
“a zero”;
Antes eu não me intimidava com
desafios.
Hoje tenho medo de tudo.
Às vezes sinto receio até de
atravessar a rua;
E, finalmente, ando num desânimo
enorme para o trabalho!
Eu que “desmontava” uma casa grande todinha
em faxina,hoje em dia, só de pensar em arrumar minha cama já me dá uma canseira
danada!
E então, querida, existe remédio para
mim?
A amiga releu as anotações, pensou um
pouco, olhou para ela com aqueles seus olhinhos maliciosos e respondeu:
_ Bom, vamos por partes:as noite mal
dormidas, a irritabilidade, a falta de paciência, sintomas clássicos desta fase
da Vida, são facilmente extinguíveis com Florais de Bach.
Os receios, medos e inseguranças são
tratáveis com injeções de Fé.
Agora, já o desânimo para o trabalho
num tem nenhum remédio em toda Medicina!
_ Uai, num tem remédio, por que?
_ Porque é preguiça mêsss!!!
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Eliane Gouveia