ENXERGAR COMO UM CEGO
Saavedra Fontes
Certa vez perguntaram a um velho
e cego, que pedia esmolas há muitos anos numa esquina movimentada de uma cidade
grande, o que ele gostaria de ver se Deus lhe desse cinco minutos apenas de
visão. Simples e sincero, respondeu que era poder enxergar um mundo diferente
do que era. Mas se era cego de nascença,
replicaram-lhe, nunca vira as coisas como nós as vemos, como poderia desejar
que fosse diferente? Só depois de muita
conversa é que descobriram que o cego se referia à sua visão interior,
acostumado que era às pessoas que iam e vinham, passando ou parando ao seu lado,
conversando e ignorando a sua presença, como se ela fosse algo que não
existisse e não exigisse respeito ou temor. Sendo cego não poderia descrever as
várias formas criadas pela Natureza, mas era sensível o suficiente para saber
como era a alma humana ou o caráter das pessoas, analisados através da
delicadeza de espírito ou da aspereza da voz. Habituado à assistir a vida rude
e competitiva, a grosseria no trato com as pessoas, o desdém, a falta de
solidariedade, percebeu como ninguém as marcas do homem moderno que qualquer
cego pode ver. E tomando o passado como comparação completava afirmando, que as
pessoas não se cumprimentam mais como antigamente, não pedem desculpas pelo
esbarrão acidental, não cedem a vez e o lugar para os velhos e necessitados, evitam
todos e qualquer um que não traga com ele intuitiva troca de interesses. Apesar
de cego ele via as mazelas do mundo atual.
Pesquisas aleatórias reveladas
aqui e ali, mostram que 85% da população troca palavras vazias. A maioria fala
de sexo, futebol, política e da vida alheia. Compreendesse o homem o valor das
palavras, das pequenas atenções e de assuntos mais importantes, estaria vivendo
num mundo bem melhor. Se junto à “malhação” para aperfeiçoamento do físico,
hoje tão em moda, exercitássemos nossa capacidade intelectual e aprimorássemos
nossas virtudes morais, estaríamos certamente reforçando nossas convicções
espirituais, as únicas capazes de nos transportar incólumes pelas fases da
vida. E chegaríamos ao fim de nossa jornada sem medos, sem sofrimentos, sem
revoltas, sem remorsos, sem traumas de qualquer espécie, sem depressão,
ignorando a velhice e sem temer a morte.
Na verdade o que nos falta, além
de uma preocupação maior com o nosso semelhante, é o hábito da alegria. Somos
demasiadamente sérios com as coisas sérias ou incrivelmente debochados,
deturpando em nós a capacidade de ser feliz. Um conceito antigo nos manda
sorrir ao acordar e manter o sorriso durante algumas horas, para que ele
continue fluindo com naturalidade e sem esforço o resto do dia. Uma prática
saudável, que deveríamos adotar para o nosso bem e o daqueles que dividem
conosco o mundo em que vivemos. Mas nos tem faltado no decorrer da vida,
inteligência e humildade para reconhecer, mesmo cientes do valor das palavras
tais como amor, perdão, compreensão e paz. Façamos um trato, vamos enxergar a
vida como o cego desta crônica, tentando mudar a partir de nós mesmos o mundo
em que vivemos, abandonando a prática do orgulho e do egoísmo. Vamos dividir
com nossos irmãos as alegrias, os bons exemplos, nossa vontade de corrigir
nossos erros plantando a idéia de uma sociedade solidária. Façamos disso a
gênese de uma nova humanidade.###
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