quinta-feira, 29 de junho de 2017

Crônicas de Eliane Gouveia

  






SENSIBILIDADE

Eliane Gouveia -  escritora ALAMI

“Minha mãe tem pelo menos setenta por cento de tudo que a gente precisa”, disse o Dênniffer.
E era verdade! 
Não contando agasalhos, roupas e calçados com os quais ela acudia sempre os “sem-mala”, Alicinha dispunha de mais mil e uma miudezas de primeira necessidade.
Com ela se achava de tudo! 
Tachinha, vela, bucha de torneira, veda-rosca, cola, barbante, isqueiro, elástico, clips, faixa cirúrgica, Cura-Tudo*, Band-aid, bicarbonato, pilha, palito, alfinete, grampo, caneta, lápis, régua, trena, borracha, apontador, mapa, calendário, dicionário, algodão, e até OB (do Médio!).
A turma, ciente daquela prodigalidade abusava.
_ Me arranja uma vasilhinha para pôr minhoca?
_ Cê tem uma peneirinha velha para pegar Lambari?
O Dênniffer era o campeão dos pedidos!
_ Mãe, me dá um chicletinho? 
_ Me empresta uma meia grossa?
_ Me arranja uma pinça para arrancar um pelinho de barba?
Naquela manhã ele estava impossível, tanto que Alicinha, de TPM, já perdia a paciência, quando ele chamou: 
_ Mãe, chega aqui um pouquinho!
Alicinha chegou até a porta da cozinha e viu o Manga Larga* Paraná puxado por Dênniffer que, carinhoso, falou: 
_ Vem se despedir, mãe, que ele já vai embora.
O valoroso animal, já com vinte e quatro anos de idade, “mansinho de passar por baixo”, fora presente do Totonho para o Cleversson, quando este ainda era bebê. 
Agora, sem forças para o trabalho, ia ser doado a uma escola de equitação para Excepcionais.
Ante a cena comovente, a irritação de Alicinha se desvaneceu. 
Abraçou o pescoço do animal, fez festa em seu focinho, desejou-lhe boa sorte e voltou rapidamente aos seus afazeres. 
Não queria que ninguém visse a nuvem de lágrimas que ameaçava despencar de seus olhos.
Depois, já refeita da emoção, analisou:
“É verdade, Dênniffer, sua mãe tem pelo menos setenta por cento de toda a miuçalha material que você precisa para viver. 
Mas você, filho querido, possui cem por cento de toda a sensibilidade que um homem bom pode ter!

Eliane Gouveia é autora de, entre outros,
Casos de Alicinha, anedotas e outras lorotas Scortecci Editora – 2017

Crônicas de Edgar Franco -CIBERPAJÉ








Eu Não Sou Mágico, Sou Mago.

            Dia desses eu estava passando pelo detector de metais do aeroporto de Goiânia e a funcionária curiosa com minha indumentária e cartola perguntou-me: - Você é um mágico? Respondi a ela sem pestanejar: - Eu sou um mago! Ela olhou-me como quem não tinha entendido nada e eu continue minha caminhada pegando mochila e cinto.
            A concepção de magia é algo muito controverso no contexto de nossa cultura completamente infestada por duas polaridades de visão de mundo, uma totalmente materialista e cética, e a outra monoteísta e preconceituosa. Nesse contexto um mago é visto como um idiota ligado à ideia de “nova era”, um pseudo guru de autoajuda, ou um feiticeiro malévolo com pactos obtusos com o demônio e realizador de rituais obscuros e obscenos. Por outro lado, na era da hiperinformação em que vivemos a internet está infestada de informações controversas e milhares de visões, proposições, e conceitos do que seria ocultismo e magia, quase tudo mergulhado em um ar obscurantista e recheado de um hermetismo que no final das contas mantém uma aura de universo misterioso e proibido para a prática mágica. A consequência direta disso é um sem número de espertalhões verborrágicos coordenando fóruns, comunidades e páginas em redes sociais dizendo-se iniciados poderosos.
            Infelizmente toda a cultura ocidental está infestada pela praga da verborragia, as pessoas falam demais, existem eruditos e conhecedores profundos de todos os assuntos, em todas as áreas. Mas em sua esmagadora maioria esses eruditos são intelectualoides frouxos e ineptos que nunca experienciaram nada. Portam-se como enciclopédias ambulantes de assuntos e temas que nunca vivenciaram e subsistem de espalhar essa verborragia inócua e enfastiante por aí. No âmbito do ocultismo e da magia acontece a mesma coisa, temos inúmeros eruditos da magia, escrevendo tratados, criando sites, azucrinando-nos em seus blogs e páginas de internet com um pseudo conhecimento mágico que não lhes serve de absolutamente nada, a não ser pelo fato de se sentirem respeitados por alguns idiotas pueris que admiram tal conhecimento.
            A única magia que me interessa é a prática, aquela que eu posso utilizar e experienciar a transformação de minha realidade. Todo o resto é lixo retórico desnecessário, a vida é breve e não tenho tempo a perder com eruditismos inócuos. Não que eu desconheça a tradição ocultista ocidental, já li demais, mas joguei praticamente tudo no lixo, mantendo só aquilo que me serve, as práticas que incorporo em minha produção artística, pois cada obra minha é uma ação ritualística de transmutação, uma ação mágica. E em essência a magia não é nada mais, nada menos do que isso, a capacidade de manipular símbolos e criar narrativas que podem transformar nossa realidade ordinária. Revelo a vocês os 3 maiores segredos da efetividade mágica, tão simples quanto profundos: O primeiro segredo para uma ação mágica efetiva é a total pureza de intenções, e isso envolve respeito e amor incondicional por todas as formas de vida e jamais conjurar o mal e a dor para qualquer outro ser; o segundo segredo é a aceitação completa do que se é – ou o completo autoperdão; finalmente um mago deve ter a capacidade de estar completamente focado no agora, no momento presente, mesmo quando desejar instaurar uma imagem em sua mente inconsciente que transmutará seu futuro.
            Tenho praticado minha magia há cerca de 25 anos, e sua efetividade é tanta que digo a vocês que tudo que sou hoje devo à minha capacidade de realizar meus rituais mágicos de autotransformação!  Deixo aqui a minha gratidão eterna ao Cosmos pelas chaves que encontrei e pelas que sei ainda encontrarei, também o meu respeito a todas as formas genuínas de transcendência, baseadas no amplo e irrestrito amor universal incondicional.

Edgar Franco é Ciberpajé, artista transmídia, pós-doutor em artes pela UnB, doutor em artes pela USP, mestre em multimeios pela Unicamp e professor do Programa de Doutorado em Arte e Cultura Visual da UFG. Acadêmico da ALAMI, possui obras premiadas nacionalmente nas áreas de arte e tecnologia e histórias em quadrinhos. ciberpaje@gmail.com



terça-feira, 6 de junho de 2017

Crônicas de Whisner Fraga

 




Exumação

Whisner Fraga é escritor.ALAMI


O terreno em que enterrara Bicho havia se tornado um canteiro de obras. Os alunos da Civil cavoucavam a teoria em busca de alicerces, baldrames, pilares.
As chances de se depararem com os ossos dele não eram desprezíveis e foi o que ocorreu. Ana passava em frente e presenciou a exumação. Sabia que era nosso gato. Sabia que estava lhe sendo concedida a chance de se despedir.
Quando do sofrimento, das injeções, do abatimento, lá no fim, Ana não tivera estômago para acompanhar os trâmites: o transporte do corpo, o funeral.
Pede ajuda a alguns colegas e decide sepultá-lo em um local mais calmo. Feita a oração, aberta a vala, foram-se os restos para a terra novamente.
Retornamos às nossas incoerências, já esquecidos, já resignados, já consolados, quando uma turma de adolescentes bate à sala de Ana. Um deles, meio assustado, em tom respeitoso, quase solene, se adianta:
- Moça, não achamos muito certo o que aconteceu.
Ana certamente ponderou que repreendiam nossa atitude, que o ambiente era quase público demais para que o transformássemos em cemitério. Continuou:
- O gato descansava e a gente foi lá incomodá-lo.
Ana escutava, surpresa. Outro se interessou:
- Como é que ele se chamava?
- Zagreus. O apelido era Bicho, mas o nome mesmo era Zagreus.
Quis emendar que não era o da mitologia grega, mas o do romance de Albert Camus, mas ponderou que soaria arrogante naquele momento. O que havia iniciado o diálogo sugeriu:
- Então a gente vai dar o nome ao laboratório de Zagreus. Por enquanto “Canteiro de obras Zagreus”. A senhora concorda?
Ana, emocionada, oferece-lhes uma placa para o tributo.
Os alunos se despedem, agradecidos. A homenagem ficaria melhor do que imaginavam. Bicho merece.
De nossa parte, uma policromia de esperanças

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Crônicas de Jair Humberto Rosa

 




Olhos penetrantes
                                                                       Jair Humberto Rosa

Onze da noite, saí do Colégio Comercial Professor Bernardo Leite Silva, na Praça da Liberdadee rumei para o ponto de ônibus, bem perto da escola, na Praça João Mendes. Era mês de março, fazia um mês que começara meu último ano do Colegial.
Cansado e com fome, seguira a rotina de todos os dias; de segunda a sextadeixava o trabalho às seis da tarde e ia para a escola, a pé, caminhando meia hora. Perto do colégio, um prédio antigo e com aparência de abandono, tinha um barzinho onde eu comia um pão francês com margarina e bebia um guaraná caçula, o que representava meu jantar.
Logo que entrei, sendo um dos primeiros, já que àquela hora, no ponto inicial poucos eram os passageiros, passei pela catraca, pagando minha passagem com as moedas que eu já levava na quantia certa. Não queria dar trabalho ao cobrador e também gosto de dispor das moedas que recebo, para não acabar perdendo-as.
Sentei-me no corredor, do lado direito, aproximadamente no meio do veículo.
O ônibus partiu pontualmente às onze e quinze.
Como de costume, logo que me sentei, uma sonolência tomou conta de mim, fechei os olhos e cochilei.
Uma forte freada num cruzamento causou rebuliço no ônibus, inevitavelmente me tirando do sono. Quase caí, mas deu para segurar-me na lateral do banco.
Sobressaltado, não tive mais vontade de fechar os olhos, o que me proporcionou a visão que tive logo no primeiro ponto de parada que se seguiu; cabelos pretos lisos e compridos, olhos amendoados, corpo esbelto. A moça subiu a escada, sentou-se na poltrona da esquerda, lado oposto ao que eu estava.   
Não obstante o frio reinante no centro da capital, senti uma forte onda de calor tomar conta de mim; despertei de vez, fiquei olhando fixamente para aquela figura impressionantemente bela, com as batidas cardíacas se acelerando significativamente.
Fiquei assustado por dois minutos, enquanto não desviava os olhos da garota,e não conseguia entender o que ocorria com minha reação ao que eu vislumbrava. Depois, sem forças para controlar-me, nem ao ponto de agir conforme o sujeito controlado que sempre fui, permaneci encarando-a ostensivamente. Senti que ela ficou incomodada a certa altura, devendo ter percebido minha atitude e podendo mesmo ter tido receio do meu comportamento. Olhou-me de forma rápida com seus olhos penetrantes, logo desviando o olhar.
No Butantã ela desceu, e eu fiquei olhando-a enquanto foi possível, esticando o pescoço para mirá-la pela janela, até que sua silhueta desapareceu de meu campo de visão. Pareceu-me que estava tendo uma perda irreparável, o que soava estranho para mim, que sempre achei que só se pode perder algo que se tem.
Seguiram-se dias de desassossego. Aquela figura angelical não saía da minha mente. E eu não sabia nem quem era, como encontrá-la, muito menos pensava em uma maneira factível de conversar com ela.
Todas as noites, de segunda a sexta-feira, até meados do mês de dezembro, entrei, sempre atento, no ônibus da linha 036, e atento permanecia até a parada do Largo de Pinheiros, embora ela tivesse embarcado, na única vez que tive a emoção de encontrá-la, na Nove de Julho. Eu tinha a esperança de revê-la.
Muitas vezescorri risco de ter acidente no trabalho, na fábrica em que eu atuava como operário, distraído com o pensamento voltado para aquela garota desconhecida que tanto me impressionara. Por duas vezes fui repreendido pelo chefe, que percebeu minhas atitudes. No colégio, à noite, a abstração era maior,e eu já não conseguia assimilar com clareza as aulas que eram ministradas.
Chegando as férias escolares, coincidindo com o período em que a produção da indústria tinha acentuada redução, os proprietários resolveram fazer várias demissões, e eu fui um dos escolhidos.
Como tive que arranjar outro emprego urgentemente, fui trabalhar no Jaraguá, e forçoso foi mudar de escola, não tendo mais oportunidade de ir ao centro da capital.
Foi mais uma perda, mas não tão sentida quanto a que me marcou para sempre; aquela figura feminina, linda e misteriosa, nunca mais saiu de minha lembrança.


 
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