quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Crônicas do Saavedra




 




QUANDO UM HOMEM CHORA
Saavedra Fontes




Moro em Ituiutaba há mais de 30 anos. Nesse período passaram pelo meu portão centenas de pobres excluídos, vítimas da crueldade do vício. Traziam no corpo e na alma as cicatrizes próprias do álcool e das drogas, escravos que eram da dependência. Muitos pelo dó que me causaram deixaram os nomes e as imagens só não deixaram saudades. Acho que foi melhor partirem do que suportar a vida que levavam. Eu não conseguia fazer muito por eles, atendia-lhes no que fosse possível, mas nunca deixava de lhes dar uns trocados ou um prato de comida, roupas usadas, cobertores, agasalhos, calçados, o que possuía na ocasião à disposição. Mas notei nesses anos todos que mais apreciavam a atenção que eu lhes dedicava do que qualquer outra coisa. Muitos se sentiam orgulhosos quando eu lhes estendia a mão devolvendo o cumprimento amigável ou lhes ouvia pacientemente as queixas. Reginaldo, alegre e fanfarrão tinha consciência de que seu destino seria trágico e não se entristecia por isso. Fabinho, que chorava diante das palavras de consolo não dava provas de remorso e mais um número enorme de pobres desconhecidos. Nenhum deles foi santo, sei bem disso. Mas eram Seres Humanos e poderiam ter levado uma vida diferente com a sorte e a oportunidade que não veio, porque uma vez o vício instalado é difícil erradicá-lo de certas pessoas. Entretanto nunca chorei por eles.
Mas hoje não consigo evitar a tristeza imensa que me invade, quando um novo tipo de pedinte me aparece sempre às sextas-feiras, dia de se drogarem suponho. Trata-se de uma mulher moça ainda, mas consumida em suas feições pelos estragos causados pelo “crack”. Não choro por ela, mas pela filha que traz consigo. Criança inocente levada em via-sacra pelos caminhos da depravação. Prostituindo-se para atender os apelos de sua dependência química, entregue à sua sorte através justamente daquela que tem por obrigação protegê-la. Faz algum tempo que não vejo mais as duas juntas. Talvez a criança, que aparenta ter de onze a doze anos de idade, tenha sido levada pelo Juizado da Infância e Juventude e entregue a um futuro melhor, não sei. Tomara que sim, pois foi um dos quadros mais triste da minha vida ver as duas perambulando pelas ruas de Ituiutaba, entregues a um destino cruel. Fabinho morreu assassinado e Reginaldo talvez de overdose ou de uma das muitas infecções malignas que existem por aí.
Quando vi essa menina pela última vez na companhia da mãe, não pude evitar as lágrimas pela revolta que se apossou de mim. Pois os seus olhos eram de uma criança triste, pareciam pedir o socorro que não vinha nunca, uma vez que paspalhos como eu não têm condição de agir e não sabem como fazê-lo. Penitencio-me pela autopiedade que se apossou de mim, tentando convencer-me de que a fragilidade de uma idade avançada pode oferecer-me a redenção. Talvez um dia, estando ainda vivo, eu possa reconciliar-me comigo mesmo e afastar o remorso de um crime que não cometi, mas pela omissão de não ter conseguido atender aquele olhar sofrido de uma criança maltratada e infeliz. Hoje eu sei que nada poderia fazer a não ser escrever uma crônica a respeito. Quem sabe alguém possa mais do que eu, vendo aquele olhar infantil carregado de mágoas, inspirado por Deus a encontre e a salve de uma vida miserável.


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