A CRÔNICA DO MÁGICO REGRESSO
São poucos os que diante de uma gravura ou fotografia antigas sabem voltar ao passado, recolhendo com olhar astuto os hábitos e costumes de uma época remota. È preciso que tenham sido leitores contumazes, observadores atentos, e ouvintes de histórias contadas junto a velhos fogões a lenha nos tempos da infância. São pessoas que adoram fantasmas avoengos e herdaram, dessa forma, uma certa atração por museus e pesquisas históricas. É um dom, não tenham dúvida.
Muito mais raros ainda são aqueles de espírito sonhador e criativo, que conseguem se integrar aos personagens retratados, vivendo e revivendo cenas de maneira a regredir no tempo e no espaço com a desenvoltura da realidade permitida. Exatamente agora, tenho diante dos olhos uma velha foto da Praça da Matriz de um lugarejo do interior de Minas Gerais, no fim do século XIX, certamente. Seduzido, deixo-me levar pela imaginação, inexplicavelmente hipnotizado pelo momento retratado, cujas figuras vão adquirindo dimensão e movimento, passando umas pelas outras, indo e voltando no seu passeio voluntário. A maioria trajando roupa branca, calça e paletó de brim, camisa de algodão abotoada até o colarinho nu, sem gravata e com chapéu, a maioria descalça. Outros se destacam pela segurança percebida no porte e no trajar, têm o olhar festeiro de um domingo especial. Debruçado no sonho e na fantasia vi quando um negro, que segurava as rédeas de um burro, fez um sinal convidando-me a chegar. Mergulhei na foto...
Era o ano de 1886 e comemorava-se a festa do padroeiro do arraial, com missa e banda de música na porta da igreja para a retreta dominical. Escravas de saias longas, lenços brancos na cabeça, seguiam na retaguarda carregadas de hircismo e desconfiança. Acompanhavam a sinhá com cheiro de alfazema e que se abanavam nervosamente, sugerindo um ar de incerta nobreza. O leque fazia parte da elegância e servia para abrandar o calor, que as roupas sobrepostas da saia-balão provocavam. Os negros escravos acompanhavam os feitores com as melhores roupas que possuíam, mas sempre descalços. Uma negra velha, de cócoras, de vestido vermelho e turbante colorido na cabeça, fuma um improvisado cachimbo enquanto analisa as pessoas que passam. A terra vermelha pisada por muitos comprometia a limpeza das calças e dos vestidos festeiros.
Após a cerimônia religiosa um foguetório encheu o ar fumaça e a praça de enorme algazarra, levando ao delírio os moleques que deixaram as casas e as senzalas nas fazendas para curtir o dia santo. A aguardente servida pelo mulato Orozimbo, de boa qualidade, fora extraída do alambique de pedra sabão trazido de Ouro Preto pelos tropeiros da região. Sorvida lentamente por um jovem e rude negro liberto, despertou nele ambições de artista, cantando e dançando de forma caricata, levando o povo às gargalhadas. Uma roda de coronéis confabulava sobre negócios e política. O pároco chegou à porta da igreja e sorriu vitorioso, uma jovem e bonita caiapó acompanhou-lhe os passos de certa distância, tímida e desencorajada pelos olhares dos fieis, que a tinham como companheira ilícita do padre italiano. Súbito, um negrinho esperto pousou os olhos em mim e notou que eu era diferente. Trajado de bermudas longas, camisa do Flamengo e óculos escuros, acabei por chamar a atenção de todos, que me rodearam curiosos. E passaram a me tocar. De repente, um empurrão, um puxão aqui outro ali e senti-me prisioneiro do passado. No presente a campainha sempre estridente de minha casa toca. Foi o bastante para que eu me despertasse escapando, renunciando a festa e voltando aos dias atuais. No portão aguardava-me um antigo pedinte, alcoólatra, querendo uns trocados. Era negro e um perfeito sósia do Orozimbo. Aquele, do século retratado.
Saavedra Fontes
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