QUANDO
UM HOMEM CHORA
Saavedra
Fontes
Moro
em Ituiutaba há mais de 30 anos. Nesse período passaram pelo meu portão
centenas de pobres excluídos, vítimas da crueldade do vício. Traziam no corpo e
na alma as cicatrizes próprias do álcool e das drogas, escravos que eram da
dependência. Muitos pelo dó que me causaram deixaram os nomes e as imagens só
não deixaram saudades. Acho que foi melhor partirem do que suportar a vida que
levavam. Eu não conseguia fazer muito por eles, atendia-lhes no que fosse
possível, mas nunca deixava de lhes dar uns trocados ou um prato de comida,
roupas usadas, cobertores, agasalhos, calçados, o que possuía na ocasião à
disposição. Mas notei nesses anos todos que mais apreciavam a atenção que eu
lhes dedicava do que qualquer outra coisa. Muitos se sentiam orgulhosos quando
eu lhes estendia a mão devolvendo o cumprimento amigável ou lhes ouvia
pacientemente as queixas. Reginaldo, alegre e fanfarrão tinha consciência de
que seu destino seria trágico e não se entristecia por isso. Fabinho, que
chorava diante das palavras de consolo não dava provas de remorso e mais um
número enorme de pobres desconhecidos. Nenhum deles foi santo, sei bem disso.
Mas eram Seres Humanos e poderiam ter levado uma vida diferente com a sorte e a
oportunidade que não veio, porque uma vez o vício instalado é difícil
erradicá-lo de certas pessoas. Entretanto nunca chorei por eles.
Mas
hoje não consigo evitar a tristeza imensa que me invade, quando um novo tipo de
pedinte me aparece sempre às sextas-feiras, dia de se drogarem suponho.
Trata-se de uma mulher moça ainda, mas consumida em suas feições pelos estragos
causados pelo “crack”. Não choro por ela, mas pela filha que traz consigo.
Criança inocente levada em via-sacra pelos caminhos da depravação.
Prostituindo-se para atender os apelos de sua dependência química, entregue à
sua sorte através justamente daquela que tem por obrigação protegê-la. Faz
algum tempo que não vejo mais as duas juntas. Talvez a criança, que aparenta
ter de onze a doze anos de idade, tenha sido levada pelo Juizado da Infância e
Juventude e entregue a um futuro melhor, não sei. Tomara que sim, pois foi um
dos quadros mais triste da minha vida ver as duas perambulando pelas ruas de
Ituiutaba, entregues a um destino cruel. Fabinho morreu assassinado e Reginaldo
talvez de overdose ou de uma das muitas infecções malignas que existem por aí.
Quando
vi essa menina pela última vez na companhia da mãe, não pude evitar as lágrimas
pela revolta que se apossou de mim. Pois os seus olhos eram de uma criança
triste, pareciam pedir o socorro que não vinha nunca, uma vez que paspalhos
como eu não têm condição de agir e não sabem como fazê-lo. Penitencio-me pela
autopiedade que se apossou de mim, tentando convencer-me de que a fragilidade
de uma idade avançada pode oferecer-me a redenção. Talvez um dia, estando ainda
vivo, eu possa reconciliar-me comigo mesmo e afastar o remorso de um crime que
não cometi, mas pela omissão de não ter conseguido atender aquele olhar sofrido
de uma criança maltratada e infeliz. Hoje eu sei que nada poderia fazer a não
ser escrever uma crônica a respeito. Quem sabe alguém possa mais do que eu,
vendo aquele olhar infantil carregado de mágoas, inspirado por Deus a encontre
e a salve de uma vida miserável.