segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Considerações em torno de um pardal e um gavião



CONSIDERAÇÕES EM TORNO DE UM PARDAL E UM GAVIÃO                    
        
Só condena a arte abstrata quem ainda não percebeu o que ocorre à sua volta ou não olhou para dentro de si mesmo. A vida é abstrata por excelência, a realidade é camuflada por conceitos religiosos e adulterada por interesses políticos. Olhamos as coisas através de um prisma falso, mas atraente para as nossas boas intenções, pregando a decência embora sendo ab origine indecorosa
O mestre do surrealismo, o espanhol Salvador Dali, sabia muito bem disso, razão talvez de suas atitudes extravagantes, aparentemente loucas mas efetivamente debochadas. Havia um propósito em suas ações, era sua maneira de rir de si próprio e de todo o gênero humano, ambos condenados pela insipidez e fragilidades física e espiritual. Utilizar o seu talento para jogar na tela a covardia, a luxuria, o orgulho, a vaidade, as ambições, o medo, os tolos preconceitos, a liberdade, não poderia ser tarefa de um gênio da  arte clássica ou de ingênuos primitivistas, mas de um demônio possuído de revolta e sarcasmo. Dotar, por exemplo, a arrogância natural do poder com privilégios constitucionais, não é uma forma abstrata de governo democrático. Abstracionismo é nós acreditarmos que se o poder emana do povo, teríamos que ter maior e melhor participação, com direitos legais à poda dos excessos da elite parlamentar.
São abstrações nossos ideais de amor e paz, nossos momentos de sonho e poesia, só por isso são belas. No amor fere a sensibilidade do tema o irrefreável instinto animal, conotações eróticas e a presença constante da libido. No que diz respeito à paz, monopolizam as atenções dos poderosos os últimos inventos bélicos, a agressiva vigilância das fronteiras e um evidente colonialismo político sugando a economia dos países menos desenvolvidos. Nessas horas nossos sonhos de amor e paz, nossos momentos de poesia, são poluídos pelo chocante trato com a realidade.
Experimentemos a janela. Ela pode trazer um quadro de indescritível ternura, emoldurando um fim de tarde tranquilo aos olhos do homem e pode ser veículos de severas reflexões... Nessas horas de festiva algazarra os pássaros se aninham na frondosa mangueira de meu quintal, foco de minha curiosidade. Os papagaios tartareiam, como sempre alucinados com a presença da noite que se avizinha lentamente. Os pica-paus estridulam, à procura de companhia que lhes afaste a solidão noturna. Os pombos arrulham notas comoventes de inconfundível tristeza. Os tico-ticos se acomodam com trinados esparsos e os bem-te-vis ainda tentam os últimos acordes com a sua algaravia. Gárrulos, os pardais se agitam balançando os galhos frágeis, numa eterna troca de posições... A cena é aparentemente lírica, doce, suave e calma, como deve ser no Paraíso. 
                                       Súbito, cai um profundo e trágico silêncio entre as aves. Estranho. Avulta-me a impressão de conluio e medo, involuntária sensação coletiva que os fracos abrigam e que lhes serve de intuitiva é tênue proteção. Um guincho forte e ameaçador devora o espaço e fere o silêncio. Rouba-me a atenção o alado e arrogante vulto que acaba de pousar, imponente, sobre a antena de televisão no telhado da casa próxima. Tomo o binóculo. Aproximo-o de minhas considerações com a vida. Seguro, altivo, um gavião no ritual selvagem de aplacar a fome devora um pequeno e indefeso pardal. Penugens sobem em torno do vigoroso bico retorcido do cruel predador violentando e dilacerando minhas ilusões com o mundo e a Natureza. Do lado de dentro da janela da sala onde estou, Cristo olha-me da parede afetuoso e indagador. Tão triste e pesada quanto a sua cruz estão minhas derradeiras convicções...

Saavedra Fontes

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