Minha decisão de ser Médico
Dr. Juarez Moraes de Avelar – ALAMI -
- Membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores –
A Medicina sempre foi minha vocação. Trago
comigo a certeza de que desgraçadamente foi a tragédia que detonou minha
consciência em relação a ela. Tanto isso é verdade que, depois da imagem de
minha mãe grávida, a segunda impressão profunda de visão do mundo que me vem à
mente é a de minha escolha profissional.
Nós morávamos em Capinópolis, e certo dia na
ausência de papai que estava em viagem de negócios, quando tudo transcorria bem
em nossa família até que a tarde ficamos assustados com os gritos de Jarbas, um
de meus irmãos. Ao vê-lo correndo ao nosso encontro, ficamos chocados e
desesperados: ele gritava e com todo o corpo em chamas. Parecia uma tocha
humana vindo ao nosso encontro. Mamãe, ainda que assustada com o quadro teve um
reflexo de importância fundamental para apagar o fogo: retirou rapidamente a
toalha branca que cobria a mesa da sala de jantar, bordada à mão por nós, e
abafou o fogo abraçando-o. Havia uma jarra d'água sobre a toalha de mesa que,
naquele rápido e desesperado gesto caiu e molhou quase toda a toalha. Assim,
ela abafou o fogo, e ao mesmo tempo, resfriou as regiões gravemente atingidas
pelas chamas. Tal acidente resultou em terríveis queimaduras nos ombros e nas
costas de Jarbas que, retorcendo-se de dor, deixava-nos ainda mais preocupados.
Experimentada na arte de enfrentar momentos difíceis, mamãe superou o choque
inicial e, num átimo, ordenou:
- Jomázio e Juarez, corram à casa de tio
Augusto e peçam-lhe ajuda. Os cuidados e tratamentos já aplicados, tenho
certeza que não são suficientes.
Tio Augusto era irmão de minha querida e
saudosa avó Olímpia, mãe de papai. Não era médico e nem mesmo tinha diploma de
farmacêutico, mas a vida ensinou-lhe a portar-se em qualquer emergência, dada a
sua excelente capacidade de raciocínio rápido e intuição clínica, fosse qual
fosse a circunstância. Capaz de tratar e curar muitos males, inclusive aquele
que afligia fisicamente Jarbas, e a todos nós sentimentalmente.
Sem perder tempo, saímos em disparada, pelas
ruas empoeiradas de Capinópolis. Era curto o percurso entre a nossa casa e a de
tio Augusto, mas durante aquele tempo, tomado de emoção pelo sofrimento de
nosso irmão e certamente impulsionado pelo doloroso quadro que subitamente
chocava a todos nós, retendo as lágrimas e com o sentimento de compaixão humana
à flor da pele, decidi que tinha uma missão a cumprir e de modo peremptório,
disse a meu irmão:
Jomázio, eu vou ser médico!
Meu irmão mais velho olhou-me intrigado e, ao
mesmo tempo, não ocultou certo grau de incredulidade. Talvez pelo chocante e
dramático momento de nossa família ele não refletiu suficientemente sobre minha
manifestação. Não sou psicólogo, entretanto acredito que naquele momento,
intimamente, ele deveria questionar algo como: “Até que ponto um moleque de 4
anos de idade pode saber o que quer fazer na vida?!?!?!”
Ao mesmo tempo pensava que ele estivesse
considerando-me apenas um pretensioso. Antes que ele falasse alguma coisa, como
se estivesse lendo seus pensamentos, fui incisivo e reforcei o que havia dito:
- Vou ser médico sim, Jomázio! Quero prestar
socorro rápido às pessoas de nossa família. A gente nunca sabe quando uma
doença ou acidente acomete nossos familiares!!!.
Após aquele monólogo, chegamos a casa do tio
Augusto, que como sempre, estava sentado num longo banco de madeira, situado na
varanda lateral. Era um homem alto, forte, austero, sisudo, de poucas palavras,
com seus óculos de lentes grossas para compensar a miopia. Nossa chegada
naquele momento em que o sol já se punha no horizonte descrevendo um enorme
arco iris com os multiplos semicírculos no céu, não lhe surpreendeu, embora não
era de praxe irmos à sua residência àquela hora. Percebi que ele nem nos olhou
e perguntou com poucas palavras:
- O que vocês fazem aqui a esta hora,
meninos?
Conclui que nossa presença não lhe causava
desconforto, nem tão pouco muito interesse. Jomázio tomou a iniciativa de
responder a pergunta, dizendo sucintamente:
- Tio Augusto, a mamãe pede para o senhor ir
lá em casa para ver o Jarbas.
Antes de Jomázio completar a solicitação de
mamãe ele já reagiu como lhe era característico, porém sem rancor ou mau humor:
- Porque sua mãe não traz o menino aqui? A
distância daqui lá é a mesma de lá até aqui.
Aquelas palavras não nos chocaram, porque
assim era seu jeito de ser. Se nós não o conhecêssemos suficientemente
poderíamos pensar que fosse expressão de irritação. Realmente Jomázio e eu
estavamos acostumados com suas reações porque lhe prestavamos serviços
diariamente em casa e na sua farmácia de manipulação na lavagem dos vidros para
colocar as drogas que ele mesmo preparava com folhas e raízes de ervas
medicinais. Tio Augusto continuava estático, sem nos olhar, quando o Jomázio
concluiu:
- O Jarbas sofreu uma grave queimadura, tio
Augusto. Mamãe já aplicou alguns remédios, mas ela está muito preocupada com a
vida dele!!! Ela pede para o senhor ir pessoalmente à nossa casa para prestar
atendimento ao nosso irmão.
Tio Augusto ao ouvir nossas palavras
entrecortadas de emoção não hesitou em nos acompanhar até nossa casa para ver o
Jarbas e prescrever adequados medicamentos que aliviaram as fortes dores. Em
seguida apresentou bem orientado tratamento durante vários dias que, além de
curar as graves feridas da pele não deixou seqüela daquela grave e complexa
queimadura.
Com a candura e ingenuidade própria de uma
criança eu estava certo. Anos mais tarde, já formado em Medicina, tive e tenho
várias oportunidades de tratar muitos familiares ou, quando não me sinto
habilitado, encaminhei-os aos cuidados de competentes especialistas de outras
áreas. Como médico e filho acompanhei meus pais para tratamento de várias
enfermidades que os acometeram ao longo da vida. Com muita dor fui companheiro
de ambos até os últimos momentos de suas vidas. Meu saudoso pai teve o final de
vida antecipado pelas conseqüências do terrível vício de tabagismo. Já minha
saudosa mãe faleceu em decorrência da senilidade com falência de múltiplos
órgãos. Hoje, passados sete décadas daquele doloroso episódio ocorrido com meu irmão, recordo com
alegria, emoção e ao mesmo tempo comovido pela acertada decisão que fiz aos
quatro anos de idade. Se eu tivesse que escolher minha profissão mais uma vez,
com toda certeza optaria, sem pestanejar, pela Medicina. Alcançar meu objetivo
não foi fácil, e mais difícil foi transpor os inúmeros obstáculos ao longo de
minha frutífera jornada de vida. Das inúmeras lições que aprendi com meu
saudoso pai, transcrevo um de seus consagrados pensamentos:
“Vencer sem lutar é vitória sem glória”
(Anísio Vilela Avelar 1909-1996)