UMA NOITE
Whisner Fraga é
escritor.
Os pingos repisam o telhado de alumínio de uma construção aqui perto. O barulho não incomoda, mas é o bastante para me acordar. Ainda um pouco perdido, entre a indigência e o sonho, afino os olhos, descontamino a audição e estou quase pronto para me levantar. Sou curioso com chuvas. Os pés combinam o frio com o chão. O vento atiça a janela, que uiva. Olho para o lado, corro ao outro quarto: tudo dorme.
Não quero atrapalhar a mansidão da noite. Então vou para a sala. Desembaraço as franjas da cortina, contendo a ansiedade. Um cheiro de trinta anos me traz a criança de novo. O capim recém-podado sua uma verdade verde, distante. A fome então era vergonha e era comum, mas todos se ajudavam: havia horta por todo o canto, havia compaixão.
Minha mãe areava o piso e os solventes nos pegavam desprevenidos. Tomávamos leite depois, pois não sabíamos o que aquela química podia provocar na gente. Química ainda era algo místico para nós. Mas dava gosto ver o brilho mais tarde, a casa inteira resplandecente para as visitas que jamais tínhamos.
E aquela água toda era um flagelo: o mato que tomava um tempo do jardim. Tudo aquilo gostava de chuva e as pragas também. A noite não chega a ser assim, porque abro a veneziana e sugo a incoerência das horas estagnadas. Há um cerco de prédios e o concreto não é bom de prosa. Fazia um tempo que não chovia e agora era como andar de bicicleta: tudo brotava com naturalidade.
As gotas martelam espuma. Deve ser quase dia, mas eu não estou curioso para saber. É bom estar sozinho, é bom ser assombrado pelas lombadas de obras que jamais lerei. Um sobressalto quando penso que tudo aqui poderia estar inundado pela ignorância de uma enxurrada. Seria ruim que as letras que nunca lerei fossem carregadas da leitura de outros. Isso não saberemos. Só podemos saber um tantinho do agora. E mesmo assim muito pouco, quase uma fofoca.
Não me importa se não volto para a cama. A fragrância daquela poluição lavada é muito diferente da outra, de trinta anos. Tampouco a chuva é a mesma. Mas a memória preenche essas lacunas e transforma essa mistura em lembrança. Onde estão agora esses ruídos, essa condenação, esses fracassos que me despertaram? Onde estão os odores que enclausuramos em cada desapontamento?
A chuva. Ah, a chuva passa.