Whisner Fraga é considerado um dos
expoentes da geração zero zero. Contato: whisnerfraga@yahoo.com.br
Carlinhos ajeita o braço de Pedro nos ombros da mãe. Mãe é colo. O menino se aquietae avança em seu sono cômodo e legítimo. O barulho, a música, o céu encrespado não o incomodam. Uma toalha cobre as costas nuas da criança e sua cabeça repousa na segurança da mãe. Mãe é colo. Pedro nem de longe lembra o menino arteiro e festivo de minutos antes. Cansou de levar o peso das coisas. Uma criança de dois anos não deveria ter fardo nenhum para transportar. Mas tem. É preciso entender e respeitar a carga de cada um.
A água está hostil. As ondas encrespadas surram o casco da embarcação. Nos equilibramos naquele marulhar sonolento, à espera dos peixes. Carlinhos desiste da pescaria e resolve se sentar ali perto de nós, ajudando na troca de anzóis. Estamos todos, até onde possível, em silêncio. Bebericamos uma cerveja enquanto os lambaris se escondem na bacia. Em breve serão iscas. Meu irmão, mais experiente, já está no terceiro tucunaré. Não temos inveja, pois a bebida está gelada e o dia está bonito.
É o último dia do ano, embora não saibamos ao certo o que isso significa. Não há ninguém saudoso, aparentemente. O vento se esfrega em nossa cara. De repente, algum animal espreita entre os arbustos. É raro algo silvestre se esgueirar pelos barrancos. Há muitos resorts transgredindo todas as leis de conservação ambiental. O bom é estar bem perto do rio e algumas toneladas de concreto não fazem diferença em nada. Algumas multas não tiram a vontade de viver. É o que devem pensar.
A chuva nos rodeia e um chuvisco nos pega de surpresa, nos refrescando. Há cerveja para todos e ela está gelada. Pedro vai para o colchão arrematar o sono. Miltinho cochila na proa. Dali a pouco, se as traíras não aparecerem, iremos para outro ponto. Ainda não se consegue interpretar precisamente o comportamento dos peixes, de forma que é preciso esquadrinhar o rio. As linhas se entrelaçam, mas não importa. Recolhemos os anzóis e trabalhamos os nós.
De vez em quando uma canoa atravessa. Um barco. O movimento não é grande. Esperávamos mais gente no último dia do ano. Não que desejássemos um rio cheio de naus. Sei que em breve haveria um réveillon, mas isso não me comove. Os calendários, como bem se sabe, são todos ficção. E só me sensibilizam ficções mais elaboradas. Quantos papas se meteram nessas minúcias? Quantos legisladores? Nem a simbologia do ano novo é instrumento que valha.
Em breve seria réveillon e eu talvez dormisse um pouco mais cedo do que de costume, devido ao barulho estúpido de rojões manchando o céu. Não gosto de ruídos inúteis. Findo o passeio, convoco Ana e Helena. Minha mãe também retorna conosco. Com o correr dos anos, não nos importamos mais com essa história de ano novo. Calendários são ficção. E o tempo?