01
AO HOMEM DA TERRA
Eugenio Franco
acadêmico da ALAMI - cadeira 99
Esta crônica é uma homenagem a um
homem que participou da II Grande Guerra e defendeu a democracia, o direito de
propriedade. Ele era fazendeiro e depois que fez a partilha da terra aos
filhos, esses foram política e arbitrariamente esbulhados do seu direito de propriedade
e desapropriados pelo INCRA.
Nascido da terra, braços
fortes e pele morena, o homem simples trabalha a terra, rasga suas
entranhas dia após dia, ano após ano.
Ele e a terra tem harmoniosa relação. Eles se
conhecem e se gostam.
Eis que uma tal democracia o chama e o leva a lugares
estranhos e longínquos, onde ele deve lutar pela liberdade.
Em um lugar longínquo ele vê
fogo, sangue, ódio e paixão. E torna-se
um guerreiro. A democracia é boa e justa.
Vencida a guerra, ele
retorna, e, saudoso beija a terra. E constrói seu abrigo pequeno e simples, e
seguro, e aconchegante. E reina absoluto, raiz,
fruto e apêndice da própria
terra.
Olha para o céu e sabe
quando vem a chuva, o vento, ou o sol. Nada o perturba; respeita a
terra e ela aprendeu a respeitá-lo.
E divide sua vida entre o
amor pela terra e o amor de uma mulher.
A querida mulher, de seu
ventre fecundo pariu muitos filhos e a terra
pariu, de seu ventre dadivoso, muitos frutos.
Então a mulher amada perdeu o
viço, pereceu e retornou à terra.
Ele se abalou, mas encontrou
nova companheira e prosseguiu sua jornada.
Um dia, a democracia que era
boa tirou-lhe a terra; a cansada e sofrida terra; banhada com o seu suor.
Então, o guerreiro já
combalido da luta, tombou ferido ao ver sua querida terra ser maltratada,
dilacerada, mutilada. Ele e a terra, choraram em silêncio... Sua dor era
impenetrável.
E o homem pereceu e retornou
ao pó. Talvez esteja ao lado da mulher que tanto amou.
E a terra, silenciosa,
permanece triste.
02
SONHOS E LEMBRANÇAS
Faminto,
devoro as palavras a cada pensamento. E elas me queimam por dentro. E me
dissolvem, sem que eu consiga vomitá-las. Por que então, insistir? Por que não
deixar que permaneçam quietas? Por que revelar-me?
É uma vida
comum, escrita na rotina simples dos dias que, se sucedem cada vez mais
rápidos. E as longas madrugadas mal dormidas?
Como resistir
a essa estranha força que me desgasta, que me trespassa como lança pontiaguda
dilacerando minhas entranhas? Devo me desnudar de minhas verdades?
Eu tenho que
liberar a minha história, ainda que seja por poucos momentos; ainda que seja
levada pelo vento ou que se deforme como sombra. Ainda que se mostre inútil; ou
que se transforme em nada. Somente
assim, aplacarei a minha fome e deitar-me-ei, tranqüilo, em minha solidão, em
minhas reminiscências. Aí, poderei escavar a minha memória, começar minha
busca.
Lembrar-me-ei do garoto que insiste em se
fazer presente em mim com seus pés descalços, com suas brincadeiras de herói e
bandido, com seu jogo de bola, seus aviões de papel, com suas folhas coloridas
de papel, com seus sonhos coloridos, suas estrelas cadentes, com seus sonhos.
E a remota transfiguração, a travessia do
adolescente inquieto e sedento e rebelde (mas não tão rebelde), ainda não foi
totalmente sepultada.
Lembrar-me-ei
do gosto adocicado da saliva que bebi no primeiro beijo. (Ou terá sido amargo?)
É a Incandescência do sexo. É a sede da eternização. (Etérea é a primeira
namorada que enfeitiça com olhos de maliciosa inocência!)!
E os beijos que
vieram depois, pouco a pouco foram se diluindo,
tornando-se efêmeros e insípidos, (menos os do verdadeiro amor, que
ainda me transubstancia em sua essência: amor-carne, amor-mente, amor-espírito,
amor-amor.) Dos outros amores eu já me esqueci.
Os meus planos
secretos, ah, esses eu não revelarei. Ainda nem foram elaborados...
Já as minhas
saudades, as minhas dores e os meus medos eu posso compartilhar; a vida
ensinou-me a compartilhar.
Os conceitos
do pouco que aprendi são aplicados em mim mesmo a todo momento: minha
geografia, minha ciência, meus desenhos mágicos, meus números mágicos, minhas
poesias, (se é que abstrações podem ser chamadas de poesias).
A minha
ansiedade então explode e lança seus estilhaços e suas fagulhas para todos os
lados, com as palavras se despindo de qualquer sentido, ainda que expondo
feridas ou espantando dores.
E assim eu
soltarei meu grito dissonante. Assim eu libertarei o meu riso, vencerei os
fantasmas que me enclausuram.
E assim eu sonharei
sonhos alados, que, entre nuvens e fumaça, me levarão aos confins; me levarão
ao limiar da história e do tempo, me levarão ao limiar da vida.
03
LIÇÃO DE VIDA
Há muito tempo havia nas proximidades de
nossa fazenda, uma pequena escola rural mantida pelo município.
Os
alunos que a freqüentavam eram filhos de
peões das fazendas das redondezas e
também da nossa. Eles iam a pé, a
cavalo, de carroça ou de bicicleta. Alguns tinham que andar longas distancias.
Com o tempo, foram se cansando; muitos
acabaram por desistir e o prefeito
mandou fechar a escola, e o prédio ficou abandonado.
Sem emprego, o
professor se apresentou a meu pai e se ofereceu para trabalhar. Era um homem magro
e baixo; humilde e tranqüilo; inspirava
confiança.
Foi
contratado como zelador, para vigiar e ajudar nos pequenos afazeres da casa e
para cuidar dos animais domésticos: os porcos, os cachorros, os gatos e as
galinhas; em troca receberia um pequeno salário, casa e comida.
Como
a casa principal era pequena e a família era grande, ele fez de um depósito de
ferramentas ao lado da garagem da camionete,
um quarto limpo e aconchegante, com poucos e improvisados móveis: uma
velha cama, uma cômoda onde guardava suas roupas e objetos pessoais, uma caixa
de madeira cheia de livros e uma pequena mesa sobre a qual ficava uma lamparina
a querosene e um antigo rádio a pilhas que ele ligava todas as noites para
ouvir as notícias. Não gostava muito de música e nem um pouco de futebol.
Em pouco tempo
todos se afeiçoaram a ele que, mesmo com hábitos de eremita, sabia se fazer
alegre e brincalhão.
Às vezes
permitia que eu folheasse seus livros empoeirados e às vezes lia algumas
pequenas histórias para mim. Ficávamos conversando por um bom tempo.
Na
época das aulas, quando íamos à cidade, ele
fazia companhia para meu pai.
Certo
dia, tendo voltado para as férias de final de ano, mamãe me avisou que era
aniversário dele.
—
Vá cumprimentá-lo, está fazendo sessenta anos!
Era
uma bela manhã; eu havia me
levantado há pouco e comia um pão de queijo à janela da sala. Ele ainda não
tinha me visto, estava de costas lavando um balde em um pequeno tanque que
havia no jardim; parecia conversar sozinho ou talvez cantarolar uma canção
antiga.
Pulei
a janela e me aproximei.
Ele usava uma barbicha branca e tinha
os cabelos ralos e brancos que estavam despenteados. Estava distraído.
Bati palmas e cumprimentei-o:
—
Bom dia!
Ele
levantou a cabeça e com um ar sério,
respondeu:
— Bom dia!... Você me
assustou!
— Me desculpe... É seu aniversário, hoje?
Já refeito do susto, sorriu.
—
É! – respondeu.
Eu
brinquei com ele e perguntei:
— Parece que o senhor está
mesmo ficando velho, hem?!
Ele ficou
pensativo por uns instantes; passou uma
mão na cabeça e depois me olhou. Não sei porque, mas senti aquele corpo curvado
e franzino agigantar-se diante de mim.
E naquele momento, o homem simples, de
gestos e palavras simples, pareceu-me transformar-se em um grande filósofo, ao
fazer do óbvio, a sabedoria. Apoiou uma das mãos em meu ombro e olhando dentro
de meus olhos, disse com serenidade:
— É
verdade, meu filho, é verdade... Mas só não fica velho quem morre
novo!
Sem dizer mais nada, eu desviei o olhar, sai
correndo e fui brincar.
Alguns anos depois, quando ele morreu,
deixou um vazio naquela casa.
E aquelas palavras, ditas há mais de trinta
anos, ainda ecoam como trovão, em meus ouvidos.
A cada dia, a cada mudança em
minha vida, posso senti-las, posso compreendê-las melhor.
E espero não
morrer novo.