Nos
rascunhos da memória, vez ou outra deparo-me com lembranças que me transportam
no tempo, são golpes de nostalgia que de tão fortes, parecem saudade.
Em
um desses dias chuvosos entrou pela janela o cheiro dos meus 8 anos (talvez 7,
o calendário da memória nunca é preciso), época em que pelas tardes da estação
“Infância” eu driblava as pernas da idade.
Lá
estava eu no colégio católico, vestido à moda da época, roupas e penteado
cuidadosamente escolhidos pela mamãe. A professora com voz de bruxa de programa
infantil riscava a lição no quadro negro, me ensinando coisas que provavelmente
nunca colocarei em prática.
O
porteiro assopra com força o apito, era o recreio; sim, o recreio da Escola
Infantil Anjo da Guarda era anunciado pelo soar de um apito. Como eu ia
dizendo, o “recreio” era um momento sagrado, onde eu colocava as brincadeiras
em dia e iniciava meu ofício de inventar estórias (qualquer dia escrevo sobre
isso).
Mas
foi na fila do lanche que a infância tomou sua decisão.
Zeca
era um menino que andava sempre suado, portador de um sorriso banguela, era o
único negro da escola, isso lhe rendia apelidos, que relevava desenvolvendo bom
humor.
Mas
enfim, Zeca chegou de mansinho, como que querendo furar a fila, baixou o tom de
voz e proferiu sua frase de impacto: ─ Ei Arthur... Ta sabendo? O Leandro
beijou a Camila.
Narrou
a cena com uma perfeição de cineasta: “Leandro, menino porradeiro e malicioso, de
estatura maior que a maioria das crianças da escola, intimidava com sua panca
de brigão e descolado. Na espreita, deixou Camila ficar sozinha no pátio do
colégio, quando teve a chance não perdoou, agarrou-a violentamente pelo braço e,
sem proferir uma única palavra lascou-lhe o beijo sem dó”. Zeca me mostrou até
as pegadas rasgadas que ficaram tatuadas na face do barro.
Aquela
historia entrou nos meus ouvidos como um alarme de incêndio, minha infância
estava pronta pra ser queimada com aquela revelação. Não que eu sentisse ciúmes
ou algo parecido, era mais que isso, até aquele dia um beijo na boca era um
privilégio exclusivo dos adultos, ou dos artistas da TV. Uma criança se submetendo
a isso era um crime capital que, se descoberto pelos funcionários da escola teria
uma punição sumária. E não deu outra, além de banguela, Zeca era um tremendo
fofoqueiro, a notícia se espalhou mais rápido que herpes em carnaval.
Rapidamente
os pais de Camila e Leandro já estavam na escola; entraram com ar de tragédia.
O
suor rútilo e frio já era visível na testa de Leandro. Os dois alunos
incriminados foram chamados para a secretaria e de lá ouvimos apenas frações de
gritos, choros e ameaças por uma coleção indefinida de minutos. Camilla que era
uma menina extremamente linda e branca feito a candura de um anjo, manteve
aquelas olheiras de choro por semanas.
O
Incidente, embora praticado em dupla, sobrou para nós humildes virgens de boca.
A
professora gritava com toda sala, sua veia carótida estava a segundos de se romper.
Disparava intimidações de que, se o crime, o pecado como também citou,
ocorresse novamente todos seriam punidos; ameaçava nosso maior tesouro: caso
fosse repetido o incidente, ficaríamos até o fim do ano sem recreio.
Essa
maligna advertência causou a castidade de alunos por vários anos (alguns até os
18, outros eternamente). Atrasando inconscientemente nossa entrada no mundo das
paixões físicas.
Aquilo
ficou carimbado em nossas mentes: o beijo é um crime e nós, como bons meninos, jamais
o praticaríamos. Mal sabíamos que um dia nos tornaríamos meliantes, furtivos
criminosos armados até os dentes disparando beijos a queima roupa.
Tal
trauma me afastou dos grupinhos da puberdade, onde a brincadeira da garrafa era
a lei e o primeiro beijo acontecia. Ao invés disso eu ia pro meu quarto começar
meus primeiros escritos, exercendo uma espécie de celibato sem batina, mas o
instinto animal é mais forte e, com o tempo, acaba rompendo a barreira do platônico
e indo muito além do toque de lábios.
Por
razão disso, ainda hoje, mesmo após ter vencido esse trauma, o cheiro de chuva
faz o projetor da memória rodar aquele filme de quando beijar era crime, e
nosso instinto delituoso apenas adormecia.
*Arth
Silva é um exímio autor de cartas de amor que nunca serão enviadas. É leitor
compulsivo e escritor vocacional. Dono de um estilo rápido, mas sem
banalidades, ao reler suas próprias obras acabou influenciando a si mesmo. Como
escritor nada lhe dá mais prazer do que escrever o espanto e o fascínio nos
olhos das pessoas. Nas horas vagas, quando lhe falta mentiras, inventa a
verdade... Aos 2 anos começou a falar; aos 3 aprendeu a mentir; teve meningite
aos 7; foi assaltado aos 15; e catapora aos 18. Odeia ervilhas.
Leia
mais textos tragicômicos de Arth Silva na página: http://sonhandoaderiva.blogspot.com.br/